OS PECADOS E AS VIRTUDES DO PAI
A relação pai e filho representa um atavismo inevitável (invariavelmente a progenitura, ao conviver com os progenitores, herdará características destes) porém moldável, a considerar que os comportamentos e os hábitos a serem legados podem contribuir ou prejudicar a vida do indivíduo em suas fases iniciais, marcando-o pelo resto de seus dias. A figura paterna, portanto, rege enorme influência sobre seus descendentes, inclusive quando essa é ausente. Não se trata apenas de estar presente ou de dar tudo que um dia quis para você como demonstração de afeto. Paternidade é, acima de tudo, uma responsabilidade e um ato de amor tão profundos, que duram uma vida toda, uma vida que pode progredir saudavelmente quando a influência é positiva, ou regredir devastadoramente quando negativa. E é sobre uma vertente paternal fadada ao fracasso que pretendo discutir aqui.
“Era para mim incompreensível tua absoluta insensibilidade pelo prejuízo e dor que podias causar-me com essas palavras e opiniões”. Em sua tentativa de alforriar-se, Kafka escreve diretamente ao pai, em “Carta ao pai”, acerca da premente vivência ao seu lado, repleta de insegurança, tácitas expectativas que jamais se cumpriam e mágoas de uma autoridade paternal distante, repreensiva e, como relatado nesse pequeno trecho, insensível ao que era importante para o filho. Busco aqui demonstrar o comum e nocivo comportamento despendido pelo pai em cujo projeta em sua prole uma nova versão de sua pessoa ou da pessoa que gostaria de ser, obliterando quaisquer fagulhas de individualidade em seu filho. É injusto encarregar aquela alma tenra criada para a honra e para a liberdade de propósitos que não refletem seu eu interior. Por vezes, suas aspirações são sufocadas pela silenciosa necessidade de agradar aquele “a quem devo minha vida” (entenda-se não apenas no sentido biológico, mas de criação também), o que deturpa o que é próprio do filho.
Estarei eu sendo desleal ao desconsiderar aqueles pais que se sacrificam na nobre empreitada de criação de um filho, responsáveis por fornecer, em sua concepção, a melhor vida possível àqueles que tanto dependem desse apoio. Não obstante, seria um erro julgar favoravelmente qualquer decisão partindo diretamente da geração anterior em relação às gerações posteriores, isso porque esse vão geracional abriga diferenças temporais, sociais, comportamentais muito particulares, capazes de tornar inválidos preceitos educacionais vistos como ideais. Primeiramente, desprezo veementemente a exigência de respeito através de “chineladas”, “palmadinhas”, etc., pois, já dizia o sóbrio e humanista Montaigne, “há não sei quê de servil no rigor e na coerção, penso que aquilo que não se consegue fazer pela razão e pela prudência, e pela habilidade, jamais se fará pela força”. Ademais, essa mania de acreditar que a relação pai e filho torna-se mais produtiva quando pautada nos carinhos calculados – ou ausentes – e nos cumprimentos objetivos e frios demonstra uma incapacidade do pai em ser pai. Talvez um chefe ou um mestre sisudo, porém nunca um pai. A única maneira de sobrepujar esse bloqueio fundamentalmente narcisista passa pela maior empatia entre as gerações.
Ousar descer do palanque e ir ao encontro dos sentimentos de alguém não é uma tarefa fácil para alguns, principalmente quando esse alguém não é ninguém menos que a pessoa por cuja criação você se responsabilizou, o incipiente fruto daquilo que você transmite a partir de quem você é, o reflexo da pessoa que você é em alguns de seus momentos mais íntimos. Caso o orgulho dê seu lugar para o amor, nota-se claramente a vastidão de novos horizontes que surgem nos laços entre pais e filhos. Essa bravura necessária para, por exemplo, poder escutar com carinho e atenção uma bobagem, importantíssima para a criança, é que aproxima duas almas dependentes uma da outra. Conquistar e educar bem um filho só é possível com um extenso e oneroso trabalho de investimento emocional e financeiro. Sim, as dificuldades em se fornecer o mínimo material para uma vida decente complicam esse relacionamento, especialmente quando o pai enxerga nessa privação de recursos seu fracasso pessoal. Contudo, nesses momentos, deve-se abdicar desse autoexílio a fim de não negar afeição a quem precisa.
Não basta querer ser pai, tem de estar preparado para tal. Uma de minhas canções preferidas, “Cat’s in the cradle”, conta a história de um pai que nunca tem tempo para passar com seu filho, sempre adiando momentos únicos e importantes em prol de uma vida não deliberadamente atarefada; por fim, quando se dá conta, seu filho cresceu justamente igual a ele (“my boy was just like me”), sem tempo para gastar próximo daqueles que se ama. Novamente, ressalto que esse estilo de vida é uma realidade de muitas pessoas e que não deve ser menosprezado (nunca se conhece a história de alguém como um todo), porém, em se tratando do atavismo comentado anteriormente, muito cuidado deve ser tomado. Palavras orientam, mas ações ensinam. Dito isso, um pai (ou qualquer outra pessoa) que se preze como semeador de experiências e de sabedoria precisa, impreterivelmente, de agir conforme se espera que seu filho aja, de modo a se manter fiel a seus princípios localizados em seu âmago.
Extraio outro trecho da carta escrita por Kafka, tão pungente e dolorosa: “rogo-te, pai, compreendes-me bem, estas teriam sido futilidade carentes de qualquer importância, que me deprimiam somente porque tu, o homem tão significativamente decisivo para mim, não cumprias os preceitos que me impunhas”. Ah, se tivéssemos mais ciência de como nossos pequenos gestos fazem toda a diferença para pessoas próximas de nós.
Ainda não somos gerados e criados artificialmente, desprovidos de qualquer contato íntimo com nossa família, seja ela como for, consanguínea ou não. Portanto, aproveitemos essa linda oportunidade de deixar para o mundo um gesto de agradecimento por tudo de bom que nos foi concedido e uma aposta para o futuro: uma criança ou um jovem cuja jornada, com auxílio daqueles que foram ou que pretendem ser pais, fez-se mais clara, mais digna, mais iluminada, por meio tenro olhar, de um atento escutar, de um amoroso ser.
“[...]
Quero fazer uma outra poesia,
com pernas e braços.
que tenha um pouco da terra e do céu,
que tenha a verdade dentro de si
sem saber,
que chore e ria e ame e cante e vibre e morra e seja eterna.
gerando sempre outras poesias.
Eu quero um filho.”
Clarice Lispector
Recomendações:
Filmes:
“Pais e filhos” (2013), de Hirokazu Koreeda;
“Lua de papel” (1973), de Peter Bogdanovich;
“O garoto” (1921), de Charles Chaplin;
“Paris, Texas” (1984), de Wim Wenders;
“Graduation” (2016), de Cristian Mungiu;
“The Royal Tenenbaums” (2001), de Wes Anderson;
“The Meyerowitz Stories” (2017), de Noah Baumbach;
“Viva – a vida é uma festa” (2017), de Lee Unkrich;
“Ladrões de bicicleta” (1948), de Vittorio de Sica;
“Locke” (2013), de Steven Knight;
“Borrowed Time” (2015), curta da Pixar.
The Crown (S02 E09 - "Paterfamilias")*
Músicas:
“Father and son”, de Cat Stevens;
“Dead man’s boots”, de Sting;
“Cat’s in the cradle”, de Harry Chapin;
“Tears in heaven”, de Eric Clapton;
“Independence day”, de Bruce Springsteen;
“Mockingbird”, de Eminem.
“Pais e Filhos”,de Legião Urbana.