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O ASFALTO E A FLOR


“Então, se de fato queremos restaurar a humanidade com meios realmente nativos, botânicos, magnéticos ou naturais, sejamos primeiro simples e saudáveis como a Natureza, dissipemos as nuvens que nos pesam na fronte, instilemos um pouco de vida em nossos poros.”

H. D. Thoreau

Inadvertidamente, mudo minha postura. Não mais me vejo andando ereto, tronco e perna alinhados, discreto balançar de braços acompanhado do caminhar repetitivo de cada passo dado. Por uma breve etapa da minha jornada diária, sou graciosamente obrigado a curvar-me perante a corajosa natureza, que se projeta para além das grades particulares na forma de galhos vestidos de folhas, desobedecendo as ordens de uma prepotente linhagem de seu exuberante altruísmo.

Naturalmente, desviei-me de potenciais arranhões, porém não do impacto macio e ondulante de suas folhas, que respondiam ao meu contato com um farfalhar genuíno como a passagem do vento – ubíquo recipiente do ar que respiro e que me torna parte do fluxo gerador e mantenedor de vida, do sopro do Criador. Uma vez cruzada, essa experiência distancia-se de minha memória conforme me distancio de onde ocorreu. Por que, então, devaneio neste evento tão comum das andanças diárias? Porque ele apenas parece comum e ordinário, enquanto, na realidade, é o “grão imastigável, de quebrar dente” – como já dizia João Cabral de Melo Neto -, que “obstrui a leitura fluviante, flutual”; é o obstáculo que nos faz atinar com a beleza que nos cerca. Por ser um esteta eclético, acredito que praticamente tudo contém uma graça ímpar e inimitável, ou seja, as construções e os ornamentos da cidade que derivaram da mais explícita influência antrópica carregam consigo toda uma história e emanam diversos sentimentos, desde o ansioso trânsito até a reconfortante segurança de nossas moradias. Não obstante, quero falar de um sentimento primordial, muitas vezes obscurecido pela entorpecedora miríade urbana: a simplicidade.

Nascendo das fissuras do asfalto, flores ganham seu espaço, rumando vigorosamente em direção ao céu; árvores, por vezes ignoradas, mostram-se presentes quando abençoam o transeunte cansado com o frescor de uma acalentadora sombra; colorem o monótono chão, as folhas de um ciclo inspirador e inevitável. Mesmo tolhida, a Natureza encontra um jeito de sobreviver e florescer, sem jamais perder sua humildade. Adapta-se ao nosso ambiente, transcendendo as influências nocivas (desmatamento para uma nova rua, para um novo prédio, para não atrapalhar o tráfego) e mantendo em seu âmago suas raízes milionárias. Uma vez fiéis a sua entidade, não precisam de mais que o necessário para existirem e tornarem sua companhia a mais agradável possível, dependem apenas de um meio favorável e respeitado por seus coabitantes. Por que não nos sensibilizamos com essa remanescente pureza? Por que insistimos em nos habituar à destruição do seio de nossa Mãe? Há perversidade nessa alienação e, como quase todos, sou perverso. Não nego ignorar com frequência as mensagens por Ela a nós legadas, e é por isso que agradeço sempre que tropeço em um montinho de chão elevado por uma raiz não contente com o subsolo, porque me faz notá-la e redescobrir o dossel vivo, de cores vivas, de energia pulsante. Sua seiva e meu sangue fluem, ambos imprescindíveis para sermos, e somos juntos, somos dependentes.

Somos uma sociedade cansada, sem tempo, agarrada a um fiapo de esperança que constantemente se esvai de nossas mãos, mas não somos só isso. Compartilhamos a vivacidade essencial de tudo que respira e estamos conectados a essa totalidade. Quando reconhecermos essa ligação e pararmos de desprezá-la em favor das ilusórias “necessidades” do homem contemporâneo, talvez possamos compartilhar dessa simplicidade que a Natureza coloca na nossa frente e que, consciente ou inconscientemente, não percebemos. Onde estiver, olhe ao seu lado e embriague-se de Vida.


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