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O MOMENTO AGORA


Em uma tempestade cerebral, a bordo de um barco que tenta resistir às rachaduras de um pensar revoltoso, lançado a esmo e predestinado a naufragar nos raciocínios incompletos, a afogar na azáfama cotidiana, a lembrar, no derradeiro lampejo de lucidez, daquela frase que nos foi dita segundos atrás e que falhamos em escutar. Por que insistimos em velejar por esses mares quando navegar em águas pacíficas agrada tanto mais nossa alma? Uma breve frase: perdemos o rumo. Essa resposta diz mais sobre nossa condição que a nossa condição em si, abarcando o obstinado desejo pela superprodução, pela superação e pela ampla (e superficial) comunicação, aspectos de uma sociedade cansada e que agride cada indivíduo que não enxerga em si e no seu redor o suficiente para se viver a vida. Somos uma raça de navegadores que não consegue mais se orientar pelos ventos, pelas estrelas. Depositamos nossa inspiração não na natureza a ser contemplada e na fraternidade de nossa tripulação, mas no nosso frágil ego e nos instrumentos que criamos para nos orientar e que nos devoram, de dentro para fora. É de se esperar que não haja saída para esses vícios. Nos esquecemos, porém, de que as estrelas não cessaram de brilhar nem os ventos pararam de sussurrar; continuam a transcendental jornada a que foram destinados, indiferentes a nós. Atualmente, compartilhamos dessa indiferença; nós, que tanto sofremos com o descaso e o desvalor. Façamos o favor de nos atentar àquilo que nos cerca, derramando significado e traçando os desígnios da luz, independente da fonte; dos sons, independente do tom; das pessoas, independente de nossa limitada visão.

É frustrante estar desatento. Isso porque deixamos passar detalhes sutilmente importantes das coisas que nos são ditas ou mostradas, que sentimos ou entendemos. O diabo está nos detalhes. Nessa queixa, há dois lados a serem compreendidos. Por um lado, nossa capacidade cognitiva não está apta a lidar com uma enchente de estímulos seguidos, pois nossa memória de trabalho – aquela que nos permite discernir as informações que se desenrolam a nossa frente em um breve espaço de tempo, como lembrar de um número de telefone segundos após vê-lo na agenda – é limitada tanto por nossas restrições inerentes como pela atrofia a qual nos sujeitamos diariamente. Em se tratando deste último fator, tente lembrar a última vez que se esforçou para manter viva em sua mente a lista de compras a ser feito ao invés de recorrer a um papel ou outro meio de gravação; isso explica uma das razões pelas quais temos tanta dificuldade em evocar aquele nome que nos foi dito recentemente. (De modo algum estou rejeitando as benesses técnicas que permitiram ao ser humano manter um registro das coisas relevantes – ou irrelevantes – que experienciaram; contudo, o prejuízo cognitivo não deixa de permanecer). Por outro lado, nos empenhamos pouco em selecionar os estímulos que deveriam ser mais importantes para nós naquele determinado momento. Precisamos de terminar um trabalho, mas sempre chegam novas e tentadoras mensagens no WhatsApp (ou pelo menos estão na eterna iminência de chegar); à nossa frente, alguém fala sobre assuntos que, no mínimo, nos interessam, o que não impede que voamos em nossa cabeça através de pensamentos paralelos ao tópico em voga, e de repente despencamos, caindo direto naquela pergunta que expõe nossa desatenção. O que mais precisamos hoje em dia é de prestar a devida atenção a tudo aquilo que nos alcança diretamente.

A prática conhecida como “mindfulness” tem ganhado os holofotes e despertado o interesse de inúmeras pessoas (eu me incluo aqui) interessadas em reverter a tempestade cerebral que nos tolhe a apreciação do presente. Para isso, existem uma série de técnicas que trabalham justamente nossa capacidade de focar nossa atenção naquilo que é mais relevante naquele momento. O momento. O ponto de desencontro das tentativas de fugir, falhando desde quando concebemos a distração, que já nos distrai, até quando concretizamos nossa perdição, sem rumo, sinapses desordenadas e imperfeitas. Escrevo agora olhando para o teclado. Será que consigo manter por quanto tempo minha missão de digitar apenas com aquilo que abstraio de uma memória que segue em frente enquanto tento futilmente resgatá-la, já que lembrar é presente, é o presente que nos permite não abandonar o passado. Minha mãe me chama; não respondo. Se já me distrai, por que continuar? Levantei e fui ver o que era. Não importa. Podem pensar que é excessivo e monomaníaco afunilar nossa atenção. Talvez seja, não me interessa. O que realmente importa é saber que se distrair, assim como um abstêmio que recai, não justifica abandonar nem menosprezar o esforço prévio. A superação de uma reincidência, quase sempre, pode nos levantar mais alto, a ponto de enxergarmos o vale atrás das montanhas, em cujo centro, coberto pelo sobe e desce de uma pele verdejante, fundida à terra, está uma árvore. Que lugar maravilhoso! O tempo estanca-se e finalmente esquecemos o barulho, as preocupações, as distrações. Enfim, estamos atentos.

Mas antes preciso prestar atenção na aula, sem me afundar no passado ou me dispersar no futuro.


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