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COVARDIA E HUMILDADE


“A luz que extingue nossos olhos é escuridão para nós”

H. D. Thoreau

Viver, simplesmente. Quantas vezes já busquei um sentimento de autossuficiência em mim, que bastasse para seguir, como filosofia vital, a máxima de Sêneca: “pobre não é aquele que tem pouco, mas antes aquele que muito deseja”. Procurei, procurei e procurei, até cansar de procurar e tentar agir, uma tentativa de contornar a inacessibilidade dessa essência ao meu âmago. Novamente tentei e novamente não consegui. Não consigo me iludir com esse pensamento do modo como um ingênuo de autoestima instável acredita em tudo que dizem a ele, por mais que eu me sentisse melhor assim. Há uma distância tacitamente insuportável entre a simplicidade como conceito e a simplicidade como prática. Resgatando a noção kantiana de ética, para um homem ser correto não basta sua ação ser correta, mas sua consciência perante aquela ação também o ser. Daí inferimos que aquela pessoa que age – ou que apenas diz agir – humildemente não é, necessariamente, uma pessoa humilde. Por que então, envergonhados de nossas pretensões, insistimos em ocultar

desesperadamente o que somos em vista de uma travestida magnanimidade?

Em Demian, Hermann Hesse nos apresenta um personagem homônimo cuja grandeza de espírito emana principalmente de sua aceitação do mau como parte integrante da existência e, por isso, como um caminho a ser trilhado tal qual os demais, dependendo apenas do livre-arbítrio delegado a cada um de nós. Consegue imaginar? Aquilo que nossa persona repudia veementemente ser uma parte complementar daquilo que somos? Pode parecer exagerado, porém é justamente essa negação obstinada que nos impede de entender mais a fundo quem somos e o que queremos. Esse tabu que rechaça os “pretensiosos” e enaltece os “humildes” surge de uma ignóbil e covarde conformidade com nosso status quo num vão esforço de esconder nossos fracassos. Enquanto não desnudarmos os sentimentos reprimidos pelo socialmente bem visto, jamais poderemos mudar quem somos. Sim, é possível mudar, mas precisamos de exibir – e não ostentar – o que somos a fim de trocarmos o que não queremos em nós como um aparelho defeituoso deve ser mostrado ao vendedor para que este o substitua por um que atenda às demandas. Um aparelho pode ter anos de garantia; nós temos a vida toda, afinal nossa liberdade garante esse princípio de inconformidade com nosso presente.

Tudo isso não quer dizer que não haja pessoas simples, que dependam de muito pouco para viver e que vivam de verdade com o que tem. Existem, claro, histórias de pessoas que se desprendem das superficialidades aceitas da sociedade e se encontram nos caminhos da simplicidade. Recentemente, terminei minha leitura de Walden, obra icônica sobre o essencial na visão de seu autor após um período de 2 anos passados na lago de mesmo nome, H. D. Thoreau, o que inclui viver apenas do que se produz, distante de qualquer excesso (entenda-se excesso como qualquer coisa que foge ao mínimo para se viver) e tendo em estima a vida entranhada na Natureza e valorizando o contato significativo com outro, já que qualquer coisa além é perda do tempo precioso para contemplação da vida. Durante o livro, me chateou a possibilidade de que esse texto poético e inspirador não passasse de uma criação insincera de seu criador, não refletindo sua pessoa; aqui retomo a ideia de uma humildade desonesta. Para meu contento e aprendizado, ao investigar mais sua história reconheci em sua prosa a manifestação literária de seu ser. Quando questionado em um banquete o que gostaria de comer, respondia “o que estiver mais próximo”. Esse é apenas um dos exemplos de alguém que é honestamente simples e que, portanto, mostra a nós o que perdemos ao ignorarmos quem somos.

Devo destacar, contudo, que não é errado, de modo algum, desejar ser uma pessoa rica espiritualmente; o que quero dizer é que nunca se será quem se deseja ser enquanto não reconhecer quem se é. E como fazer isso? Bem, não tenho respostas para isso; acredito que ninguém as tenha. E mesmo não sendo totalmente visível a estrada de tijolos amarelos, recai sobre nós a tarefa de abrir os olhos perante a penumbra ao nosso redor; quem sabe nossa visão se adaptará ao escuro.


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