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AS GOTAS DA TEMPESTADE


Chove lá fora. Sob o teto que me prende em dias convidativos, encontro o abrigo das causas desastrosas. É dentro desse universo arredio que me seduzo pela tempestade. Através de todas as janelas enxergo o translúcido caminho cíclico de toda ascensão, a sua fadada queda. A observar as gotas caóticas caindo, lanço-me à incerteza do esconderijo, não pela estrutura que me defende, mas pela vontade que me corrompe. Tremulamente, flerto com as lágrimas de um céu em prantos pela desgraça terrena, com a mesma essência do meu choro pela esperança frustrada, pelos objetivos trincados, prestes a despedaçar.

Talvez me identifique com essa tristeza. Talvez apenas aprecie sua melancolia. O que não consigo saber ou distinguir é qual tipo de fascínio a chuva me provoca. Escondido da vida em um bar, agradeço a chuvarada lá fora, cúmplice da minha vergonha. Ansioso pela manhã engrandecedora, aceito em protesto a traição de todas as minhas expectativas. Se quero dormir, a tempestade me acalenta, pois sei que estou seguro, sem os desejos suicidas que foram suprimidos pelo cansaço físico e mental. Lá fora, desprovida de pudor, a tempestade homicida ceifa a alma daquele pobre sem-teto, mendigo para todas as horas.

Escorre por entre as pedras, o desfecho inexorável. Para mim, não seria chuva as gotas que caem em um abismo sem fim, assim como não seria vida aquela que não se finda. Faz parte da natureza o encontro entre ato e consequência, não importando o quão inconsequente aquele é. A deambular pelo asfalto rarefeito, acidentado, que abre os caminhos das correntezas, percebo o encanto da tortuosidade, que dá espaço para o fluxo da água que é vida. No meio do percurso, sem um início pontual, a passagem suave da vida fascina por seus sons pacificadores e purificadores. Tais quais as insidiosas mudanças pelas quais passamos na moldura de nossa existência essencial, fragmentos do que restava se vão e novos – que deixam de ser fragmentos e se tornam amálgamas – coalescem em um todo, moldando um novo caminho. Não um caminho de todo mudado, mas que emite barulhos distintos dos anteriores, por mais imperceptíveis que sejam, o que faz toda a diferença.

E de repente é tempestade. Enchentes, alagamentos, desabamentos. O céu repele o olhar do inadvertido. Sua atração principal? O mar na terra, as turbulências exasperadoras que consomem a calma, que afogam a vida. É arriscado pular, impossível atravessar, sair incólume do desastre. Perdemos nossa ilusão de controle e nos desesperamos perante a força maior. Maior que a terra, maior que os céus, maior que nós. Em um episódio de fúria indomável, a natureza rasga nossas mal calculadas possibilidades, provando nossa insignificância face ao que está acima da terra, dos céus, de nós. O telhado cede à pressão e nos desestabiliza. Coitados de nós, confiamos no telhado, na existência de um escudo impenetrável, incorruptível, e ficamos à mercê do nosso desalento. Desgraçados que somos, sucumbimos ao que vem de cima; ficamos embaixo, enterrados na lama, sem fundação que sustente nossos corpos. O telhado foi solução? Enquanto não chovia, era nosso cavaleiro de armadura brilhante; na tempestade, nada restava a esse covarde. E a culpa não é apenas dele. Nós também somos covardes e continuaremos a ser até mesmo quando nossa existência encontrar-se irreversivelmente condenada. Mas a Natureza se refaz, nós seremos refeitos. Para que nos preocupar? Por que não nos rendermos ao fenômeno, tirando o peso de nos preocuparmos? Por que não abraçamos o desastre e aceitamos o castigo? Porque somos chatos, obstinados. Não aceitamos morrer, mesmo nos submetendo aos perigos de uma vida egoísta e irrelevante.

E como era de se esperar, a tempestade passou. Restamos nós na arca dos vivos. Afundamos a dos mortos. Um novo dia, uma nova vida, um novo ciclo de chuvas. O que era nublado torna-se límpido; o que morreu acolhe a vida; o que evaporou mancomuna-se para reciclar o que remanesceu. Esquecemos tão facilmente dos eventos passados quanto esquecemos da morte do vizinho. Mais uma vez a chuva cai, a benção da fertilidade se aproxima com ternura e os homens agradecem – e até dançam – a vindoura prosperidade. Os sábios, por sua vez, reforçam suas moradias, pois sabem que a natureza é traiçoeira.


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