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Aos céus


O céu, vertiginosa vastidão fatal, carrega a natureza daqueles que alçam voos para sobreviver. Não há altura humana capaz de simular a jornada aérea dos pássaros, andando pelo firmamento, o sonho dos homens e o ofício dos anjos. Nuvens escassas imprimem leveza à nossa visão; nuvens são obstáculos transponíveis para os animais que se recusaram a descer.

Acima das montanhas, o falcão ignora os limites físicos a que os Homens se sujeitam e mergulha afiado, voraz, seguro da sua posterior ascensão. Fere as suaves correntes de ar que não permitem o fim do ciclo natural, perde altitude e adquire precisão como uma flecha divina, marcada para matar. Às águas do lago, aquele pato não retornou. Voa sem bater as asas, existe sem saber. Fatalmente, cede seus últimos momentos à tranquilidade de não ter que lutar mais, pois a ansiedade do coelho é maior enquanto foge do lobo. Desconheceu o que era; humildemente foi sem saber a razão que o trouxera até ali.

A rua, repleta de pressa e inquietação, carrega histórias das vidas cruzadas. As faixas de pedestre seguram a azáfama cotidiana pelo pescoço do motorista, que se digladia com as marcações de trânsito como um animal que é amarrado diante de sua presa imaginária. E esse desgosto pelas pequenas pausas diárias no tráfego, que mais parecem gozações com aquele que precisa chegar ao trabalho que o mantém insatisfeito, ir a uma festa que detestará ou visitar um parente com cuja personalidade não bate, alimenta um ódio tácito por tudo aquilo que não está inscrito em seu imperscrutável automóvel. À revelia de um dia inútil, Pedro navega pelas ruas de mão dupla, largas o suficiente para passagem de dois carros lado a lado de cada lado, em um período de leve intransitabilidade atípica, que o surpreendeu quando previa uma viagem rápida até a casa da mulher que abandonara por tentações espúrias. Angustiado, lidando com sua pulsante consciência, trava suas flutuantes ideias de desculpa e dá vazão a uma descompensação insubordinada, abrindo a boca para vociferar palavras abafadas como se todos ouvissem – para seu monólogo, somente ele na plateia devia bastar. A causa era uma senhora, frustrantemente prosaica, que por um momento enxergou no meio da faixa de pedestres o consolo de se perder por um tempo. Tinha estatura mediana, cabelos brancos à altura dos ombros, não usava óculos por não precisar tanto e acreditar que as lentes poluíam sua visão, com uma coluna levemente encurvada para frente. Costumava usar suas roupas compradas num brechó com a dignidade de uma estrela de cinema, mas não agora, não aqui, no meio da faixa de pedestres; poderia estar nua e a expressão confusa continuaria caracterizando cada um de seus poros.

Começou a travessia com a subjetividade desnorteadora de um trabalho que precisa ser finalizado de imediato, parou no meio do caminho com a objetividade de um aventureiro perdido na selva que pausa para reorientar-se; e quem sabe o que o fim guarda para esta senhora? Até onde se sabe, poderia infartar sem jamais chegar ao outro lado. Gostava mesmo era de ficar em casa, aportada em seu sofá de gerações, porém algo a levou a estar ali; o que era, não tinha ideia. Olhava ao seu redor na tentativa de se situar como quando procurava o colo da mãe nas festas cheias de estranhos. Não havia mãe, agora ela era a mãe e queria colocar sua filha no colo mais uma vez, pois sentir alguém que se ama junto a você é um lugar seguro, esteja onde estiver. Os carros famintos pisavam no acelerador, fazendo-se ouvir, já que suas consciências não deixavam a buzina despertar a senhora de seus devaneios. Não eram devaneios, ela estava perdida. Tudo que mais queria agora era alguém para pegar sua mão, leva-la até sua casa, até o conforto do seu sofá e acabar com esse voo sem rumo. Ela queria mesmo era um abraço, mas o metal e as rodas atropelavam essa possibilidade. Pedro, sentindo esmorecer as chances de reconquistar sua amada a cada segundo que o relógio lentamente denunciava, ganiu sua buzina em um ímpeto incontinente. A realidade despencava por sobre a senhora que atravessava a rua. Não mais aturdida pelos sentidos que a enganavam, logo apressou-se em terminar o que começou, bastando ínfimos segundos para que suas sôfregas pernas martirizassem o fim do caminho.

Caminho liberado, carros acelerando, motoristas arrefecendo. E com isso Pedro segue sua vida, imiscuindo-se no meio dos outros veículos e voltando a pensar nas desculpas, sempre nas desculpas.

Aquela senhora que encontrou no meio do caminho, nunca mais a viu, o que por si só é uma pena, considerando que se conversassem talvez redescobrisse o aconchego que só sua avó alguma vez proporcionou. Mas ele estava com pressa e ainda não conhecia a dor de perder um filho.


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